16.9.09

Lutero, Erasmo e a reconciliação dos cristãos

Religião e Dinheiro misturados, em qualquer lugar ou época, sempre inspiraram suspeita ou provocaram confusão. E não sem motivo, pois a Religião associa-se às coisas do espirito, à fé e à pureza, enquanto que o sonante é emparelhado ao mundo da materialidade, da avareza e da corrupção. Jesus Cristo, como é sabido, desconfiava da presença das moedas nos campos da fé. Ainda quando ele aconselhou a um jovem abastado a desfazer-se dos bens em favor dos pobres, mesmo assim acreditava ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico alcançar o Reino de Deus (Mateus, 19). Para ele, quem tinha muito dinheiro era irrecuperável.

Cristo e Lutero

Lutero na Dieta de Worms, enfrenta o imperador Carlos V(1521)
O Galileu redobrou sua posição em manter a fé longe do mundo argentário quando, num célebre episódio, expulsou os comerciantes que mercadejavam nas cercanias do Templo em Jerusalém e, em seguida, em resposta a uns fariseus e herodianos que lhe inquiram sobre a legitimidade dos imposto exigido pelos romanos, ao mostrar-lhes um denário com a face do imperador, conclamou-os, afastando-o de si, que o devolvessem: “a César o que é de César, e o que é de Deus, a Deus”(Mateus,22).


Martim Lutero, quinze séculos depois, de certo modo, seguiu-lhe nos ensinamentos. O rude monge alemão que se tornara doutor em teologia, mais de mil e quinhentos anos depois desses episódios relatados no Novo Testamento, não vira mal nenhum em rejeitar veementemente a comercialização de indulgências que estava sendo praticada por quase toda a Alemanha com a autorização papal. Quando o padre Tetzel, um representante do arcebispo Albert de Brandeburgo e do Banco Fugger, aproximou-se das propriedades de Frederico o sábio, o príncipe-eleitor da Saxônia e suserano do doutor, visando o escuso e nefando negócio de perdoar os pecados em troca de dinheiro, Lutero foi a luta. Sentiu-se no papel de Cristo empunhando um cajado contra os vendilhões do Templo, no caso Tetzel e a quem representava.


Ao afixar no dia 31 de outubro de 1517, nas portas da igreja do Castelo de Wittemberg, em Augsburg, suas “95 teses” atacando a Igreja Romana, o monge alemão provocou o maior cisma na história da Cristandade Ocidental. O argumento central de Lutero, de raiz paulina, era simplíssimo. Ninguém estava autorizado na Terra, nem padre nem papa, a salvar fosse quem fosse. A salvação era um atributo exclusivo de Deus. Nem mesmo as boas ações adiantavam. Sequer gordas esmolas ou confissões arrependidas. Como poderia o Onipotente, policiando um universo infinito, levar em conta os gestos de caridade ou sincera constrição de um ou outro dos crentes? Logo, traficar perdão em nome de Deus era, no mínimo, obsceno.

Erasmo sugere a reconciliação

Desiderius Erasmus em 1523
O Papado, porém, reagiu a Lutero como faria um chefe de corporação ofendido em seus privilégios. Em 1520, Leão X, um descendente dos Medici (um glutão, de quem Voltaire disse “ter Deus no estômago...e o dinheiro extorquido das indulgências nos seus cofres e nos da sua irmã”), expediu uma bula excomungando-o. Foi o início do desastre para a unidade cristã. Ao ter a Cúria permitido, ao longo dos séculos, que a Igreja-estado mantivesse ligações incestuosas com o Dinheiro, fez por contribuir para que parte considerável da sua imensa construção medieval, estocada por Lutero, ruísse para nunca mais se compor.


Erasmo de Rotterdam, o grande humanista que se antecipara a Lutero em suas críticas ao Papado (*), ainda tentou uma apaziguação entre as partes cada vez mais hostis apostando numa reforma do clero pela brandura, aconselhando Roma a que não levantasse o báculo em guerra contra Lutero. Aquela altura porém, por detrás do monge doutor vibrava indignada uma Alemanha quase que inteira em pé de guerra, furiosa contra o Pontífice de Roma. Nos decênios seguintes à insubmissão de Lutero, protestantes e católicos ensangüentaram a Europa com suas guerras a pretexto da fé.


Todavia, mais recentemente, aproveitando-se do clima geral de concórdia existente na Cristandade por ocasião da passagem do Jubileu de Cristo, Católicos e Luteranos, após cinco séculos de turras e troca de desaforos, decidiram reconciliar-se assinando na mesma Augsburg, o epicentro da vulcânica reforma de 1517, a Declaração Conjunta Sobre a Doutrina da Justificação, harmonizando suas concepções sobre a Salvação, uma das causas teológicas de toda a discórdia anterior. É uma homenagem tardia a Erasmo. Porque não o ouviram então?

(*) “O povo corre para as igrejas como a um teatro para divertir-se. Então é preciso levantar-se dinheiro para o grande tributo do órgão, por manter multidão de meninos...Neste meio tempo nada de bom é ensinado.”

Erasmo – “..ad veram Theologiam”, 1519

Fonte:História por Voltaire Schilling