13.10.09

A História do Tempo Presente na Europa depois de 1945


A História do Tempo Presente na Europa depois de 1945 - Como se constituiu e se desenvolveu um novo campo disciplinar 1

Por:
Pieter Lagrou
Professor da Université Libre de Bruxelles
e Pesquisador do Institut d’histoire du temps présent – IHTP

Introdução:

A idéia segundo a qual a história se define pela distância temporal entre o historiador e seu objeto de estudo é antiga. Tentar escrever a história no quente de sua própria época sempre suscitou desconfiança. Assim, dentro da preferência de memória, na verdade uma história do reino de Luís XIV, cujo término fora em 1743, Saint-Simon parte do ponto de saber se é possível escrever e ler esta história, singularmente esta de seu tempo
2. O autor distingue a história geral, “esta que é de fato a amplitude histórica de diversas nações e/ou esta de múltiplos séculos da Igreja” na qual o valor não está mais em questão, da história particular, “esta do tempo e país onde vivemos” 3. A prática desta última sublinha duas subjeções maiores. Primeiramente, a escrita da história de seu tempo é em si um ato perigoso. “O indivíduo que escreve a história de seu tempo, que se prende a verdade daquele tempo, que não se familiariza com ninguém, culmina por escondê-la. Teríamos nós um ponto de crença e crédito na quantidade de pessoas, ofendidas pessoalmente pelos seus mais próximos através das verdades mais claras e certas e ao mesmo tempo mais cruéis! Para tanto, o escritor deveria então haver perdido o senso e o sentido para deixar-se suspeitar de sua escrita. Sua obra deve então, amadurecer sobre a guarda de uma chave, das mais seguras, passando assim, aos seus descendentes. Estes deverão sabiamente administrá-la por mais de uma geração ou duas, não a deixando transparecer até o momento no qual o tempo se encarregará de fazê-lo 4. Na continuação de suas memórias, o leitor encontra-se com margens de interpretações muito dúbias quanto à sinceridade da crença de Saint-Simon: a sua história era demasiado escandalosa para ser consumida e concebida em seu tempo. A principal objeção formulada por ele é de uma ordem diferente. "A caridade pode conviver com a história de tantas paixões e vícios, da revelação de tantos crimes, de tantos pontos de vista vergonhosos e do desmascaramento de tantas pessoas que, sem esta, teríamos preservado a estima, ou teríamos ignorados os vícios, defeitos e falhas? Uma inocente ignorância não é preferível a uma instrução tão distante da caridade? E o que podemos pensar de uma pessoa que, não contente com o que ele tomou para si ou para terceiros, a envia para a posteridade, revelando muitas coisas de seus irmãos infames e muitas vezes criminosas ou desprezáveis?" 5


Se a objeção parece datada, a sua refutação é decididamente moderna: "Compreendo que o conhecimento é sempre bom, mas que o bom ou o mal consiste no uso que nós fazemos deles. [...] Os malvados, que neste mundo tem tantas vantagens sobre os bons, teriam outro fator em seu favor. Se aos bons não fosse conferido o direito de discerni-los, de conhecê-los, e, conseqüentemente de se reproduzir, [...] para transmiti-los tais quais são e como eram posteriormente, transmitindo-lhes a história de seu tempo. 6 “Aqueles que possuem a confiança dos generais, dos ministros, ainda mais aqueles que possuem a confiança dos príncipes, não devem deixar de ignorar os hábitos, a conduta, as ações dos homens. Estes são obrigados ao povo tal como são, para garantir a manutenção de suas forças, e, sobretudo, para preservar-lhes das más escolhas. É uma caridade estendida àqueles que governam e que observam principalmente o público, que deve sempre ser preferido em relação ao particular. Os condutores dos assuntos públicos, em sua grande maioria ou em boa parte, estão muito ocupados com negócios, facilmente enganados e movidos pelo interesse geral, no intuito de fazê-lo bem sendo capaz de discernir e separar. 7 Em suma, para Saint-Simon, entre os perigos do exercício da história do seu tempo - perigo que expõem o historiador à retaliação, mas também ao risco de parcialidade - e a responsabilidade de informar o público e os governos é esta última que de fato o importa.

Dois séculos mais tarde, a questão levantada por Saint-Simon não havia perdido sua relevância. Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa se encontrava profundamente dividida sobre a interpretação de sua história recente. A catástrofe que o continente acabara de sofrer abrira um questionamento: o entusiasmo pelo fascismo e do nazismo antes da guerra foi a prova do fracasso da sociedade capitalista, ou ao contrário, a ilustração dos perigos dos regimes totalitários fundamentalistas, incluindo o comunismo? A derrota, a colaboração, e o resgate vindo do estrangeiro haviam demonstrado o fracasso dos Estados-nação, ou será que estes haviam se libertado pela força de suas próprias resistências? Na ausência do recuo necessário, face à improvável imparcialidade, ou seja, mesmo na ausência de fontes disponíveis que os permita aplicar a sua metodologia, nos diferentes países europeus, são os historiadores os que mais se abstém deste temeroso esmagador. No entanto, o desafio era muito diferente para os diversos países: a Alemanha derrotada, iniciadora da guerra acabara de assumir a responsabilidade por seus crimes; triunfante, mas exausta, a França humilhada, mas aspirante em atuar em primeiro plano. Com isso, as considerações de 1945 foram significativamente diferentes das feitas em 1918, quando historiadores haviam desempenhado um papel fundamental na interpretação da Grande Guerra, com resultados como a criação da Biblioteca Internacional de Documentação Contemporânea pelo universitário Pierre Renouvin - ou pior - como evidenciado pelos testemunhos historiográficos nacionalistas ativistas sobre as responsabilidades pelo conflito ou "livros brancos" e "livros pretos" sobre as atrocidades cometidas. Além disso, apesar de uma convergência sem precedentes das sociedades européias após 1945, cada país escolheu um caminho diferente de reconstrução nacional, com uma geometria política bastante variável. A Itália pós-fascista; bipartidarismo na Áustria e a política triunfante de consenso que na Holanda são exemplos da diversidade européia. É neste contexto que devem ser situadas as historiografias nacionais, suas articulações institucionais, políticas e intelectuais.

Este artigo se propõe a descrever a evolução da história recente da Europa no século XX e a sub-disciplina nascida desta história desprezada exercida à margem da paisagem acadêmica em uma das áreas mais prolíficas e hegemônicas. A diversidade terminológica nesta área é grande e em constante evolução. Caracteriza-se, em geral, pelo aumento de denominações dos sucessivos períodos históricos. Na França, a história moderna tem sido definida como diferente da história medieval, o que obrigou os contemporâneos da Revolução Francesa a determinar o seu próprio tempo, rompendo com o Antigo Regime, que caracteriza a era moderna como história contemporânea. Desde as décadas de 1930 na Alemanha, a consciência de ser contemporânea de uma nova ruptura com o advento do nazismo, a noção do conceito de
Zeitgeschichte forja a história do seu tempo. A expressão "história do tempo presente", introduzido na França no final dos anos 1970 por uma nova escola que queria se diferenciar historiograficamente daquela que até então estudara o século XIX, foi explicitamente inspirada da terminologia alemã. A situação é semelhante no país de língua holandesa, onde o termo história contemporânea teve suas bases do superlativo "novos" (nieuwe Geschiedenis designando os tempos modernos e nieuwste Geschiedenis o período entre 1789 e 1940), forçando a introdução do neologismo eigentijdse Geschiedenis (história do seu próprio tempo) para o período posterior à 1945. Entretanto, a ruptura de 1989 está provocando uma mudança de terminologia, uma vez que nos sentimos cada vez menos contemporâneos deste século que encontrara uma nova unidade com o desaparecimento de regimes e ideologias que fizeram parte de sua singularidade. Este artigo não tratará, em nenhum caso, de periodizações fixas, mas, sobretudo da prática e da sensibilização para a prática do tempo relacionado ao seu objeto de estudo.

Para além das especificidades nacionais e terminológicas, acreditamos que é possível identificar etapas comuns na emergência de uma história do século XX no período pós 1945 dentro da escala ocidental européia. A história deste período e dos países em questão foi primeiro confiada à instituições especializadas, como os institutos nacionais e/ou os institutos filiados às grandes famílias políticas. A partir dos anos 1970, a história recente ganha os seus títulos de nobreza acadêmica e integra-se nas redes e nas instituições habituais de investigação e de ensino universitário. Uma evolução concomitante, através da figura do historiador perito, marca esta banalização e tende novamente a marcar a singularidade da relação entre a história do tempo presente e o seu objeto. Atravessando meio século e a metade de um continente, este esboço apoia-se sobre exemplos tirados de diversos contextos nacionais. Este possui um valor ilustrativo e com isso, não representa o conjunto de historiografias nacionais. A historiografia européia, como a própria história européia, é feita de singularidades e exceções. Com o cuidado de evitar qualquer tratamento global, e conseqüentemente por com uma dosagem cuidadosa de traços específicos e traços gerais, é desta forma que procede este artigo.


2. A paisagem historiográfica do pós-guerra

A obra de Henri Michel e Boris Mirkine-Guetzévitch,
Idées Politiques et Sociales de la Résistance , publicado pelas Imprensas universitárias da França em 1954 e prefaciado por Georges Bidault, foi uma das primeiras publicações sobre a Resistência aspirante aos moldes de uma obra científica, No seu prefácio, Lucien Febvre, um dos decanos da disciplina histórica na França, recomenda a leitura da obra “aos cavaleiros sinceros e usuários astuciosos [...] “da objetividade”, demonstrando a tentativa de questionar. Uma década após a iniciativa de se escrever os brutais acontecimentos deste período entre 1940-1944, é impossível após 1953, empreendê-lo, e dedicar-se à um projeto fracassado; ou são os documentos secretos; ou são os espíritos sobre-humanos críticos capazes de criar e elevar-se para não cair nas armadilhas das verdades partidárias? Esperemos, quarenta anos quando então os atores da tragédia já haverão falecido, ou moribundos, os historiadores poderão então, com as cinzas resfriadas, começar a retirar sem queimar-se as castanhas cozidas da legenda oficial” 8. Com isso, a apologia de sua história, de seu tempo e seu país é, portanto difícil. Lucien Febvre reconhece a lucidez dos autores perante um assunto tão complexo e controverso, no entanto, lamenta a falha destes autores de não lograrem inscrever esta história dentro da história de longa duração da história das idéias políticas da França, “limitando-se a um compartimento demasiado estrito e limitado do tempo”. Por fim conclui sobre com nota mais relativista que elogiosa: “Infelizmente, há muitas possibilidades distinto de cinqüenta anos atrás, e ainda assim os Historiadores dizem qualquer coisa [...]. Dirão os Historiadores qualquer coisa, ainda que sendo homens do ano 2000. Razão pelo qual devemos procurar estes homens de 1950 (que foram também os de 1940 e, alguns, os homens de 1920) - razão pela qual devemos buscar-los com toda nossa honestidade para mostrar-lhes a nossa versão dos acontecimentos que, certamente, serão interpretados de outra forma que não a nossa. Que não poderão interpretar da mesma forma que nós eu entendo - mas também que os Historiadores do ano 2050, que terão seguido todo este percurso, sem que possamos dizer que têm razão, eles, e que nós falhamos. Ao menos a nossa versão dos acontecimentos tiveram as suas provas vivas, sendo autenticada por milhares de sacrifícios. Em duplo sentido da palavra - tiveram seus Mártires. 9 ” Em última análise, para Lucien Febvre, a história do tempo presente se faz mais do reconhecimento de uma dívida moral para com os mártires e os testemunhos, e por conseguinte, desta comemoração do que com a própria historiografia científica.

O prefácio de Lucien Febvre caracteriza de forma clara a paisagem historiográfica francesa durante as primeiras décadas da segundo pós-guerra. A gravidade da dívida moral para com um mártir havia um nome: Marc Bloch
10. Lucien Febvre tendo aceitado assumir o cargo de coordenador da revista Les Annales dada a expulsão de Bloch expulso da Universidade pelas leis anti-semitas de Vichy. Marc Bloch escolhe a resistência sendo executado pelos alemães em junho de 1944 num campo à alguns quilômetros de Lyon. Marc Bloch não somente demonstrou coragem física, mas também coragem intelectual aplicando a sua metodologia e a sua análise em assuntos de grande cautela, como o uso de sua experiência de soldado durante a Grande Guerra e a sua vivência desta estranha derrota de 1940, dando-lhe o status, desde então de santo padroeiro da profissão de historiador na França. Os seus sucessores - às vezes orgulhosos usurpadores – inclinaram-se bem mais a preferir a longa duração da história antiga à curta duração da história de seu tempo. Há uma estranha ironia, apresentada pela escola dos Annales, à despeito da dita “história relativa aos acontecimentos” ou l’histoire événementielle e “a história das batalhas e lutas”, ou l’histoire bataille, precisamente no momento em que um acontecimento catastrófico e uma batalha mundial acabaram de agitar o mundo. A história de longa duração não aparecia então como um comportamento de fuga intelectual? A tentação pode ser forte em declinar esta pergunta retórica em acusações ad hominem. Não seria ela a resposta de uma trajetória pessoal que os teriam inclinado a preferir a longa duração à um Lucien Febvre ou ainda à um Fernand Braudel - sem dúvida, mas desprezando a linhagem intelectual em detrimento da história contemporânea - e que foi cortada dos acontecimentos, perturbando a sua própria época durante os seus cinco anos em um campo de prisioneiros de guerra na Alemanha?
Dentro deste modelo de instituições é bastante fácil ocorrer o discreto à uma corrente intelectual que dominou a pesquisa francesa em ciências sociais por mais de 30 anos. Era bastante cômodo para esta geração de historiadores de evitar a história recente e de desprezar a história política. Portanto, eles testemunharam um outro tipo de engajamento que nós poderíamos qualificar de progressista, ou para alguns, de socialista, compartilhando, por exemplo, com a New History britânica, em torno de historiadores como Eric Hobsbawm e Edward Thompson, ainda que estes não tenham nunca desprezado o contemporâneo e o político. 11 Se tratava da convicção de que, em se analisando as estruturas profundas da sociedade em sua perspectiva de longa duração, mais precisamente as estruturas de desigualdade e de dominação, das quais os historiador tinha um papel crítico, muitas vezes um papel de propor soluções para remediar as injustiças inerentes à essas estruturas, um papel de emancipação, para somente então haver uma compreensão de todo este processo. Para àqueles adeptos à corrente dos Annales, esta idéia se respaldava na confiança de uma maleabilidade da sociedade, na idéia de que o intelectual, pela força de sua análise e pela força de sua proposição, podia intervir nas estruturas da sociedade. As ambições intelectuais do historiador, que se postulam ora em consciência crítica ora em um comentário político parecem então bem modestas, ligadas exclusivamente às liberdades negativas da democracia liberal, desvendando os mitos e denunciando os crimes, ou então, de reforçar os fatos e as circunstancias – mais próximas, afinal, dos objetivos dos cortesãos e conselheiros do príncipe de Saint-Simon.

Antes de tornarmos o olhar para o ressurgimento deste modelo em questão, retornaremos ao contexto do momento pós 1945 e à posição da história recente na paisagem intelectual e acadêmica nesses anos. A vanguarda intelectual e a elite acadêmica – esta que detinha boa parte da produção acadêmica bem como os postos nas universidades – desprezavam seu exercício, deixando a historia de eventos e fatos, bem como as batalhas recentes da história aos historiadores da segunda zona. No entanto, este desinvestimento não foi imediato. Durante um período inicial de movimento cívico, abrangendo os anos de 1945 a 1947, os protagonistas da historiografia nacional responderam ao chamado, aceitando se ocupar de maneira prioritária desta história recente. Os cursos dados por Lucien Febvre no
Collège de France sobre a guerra e sua implicação na Comissão da história da ocupação e da Liberação da França, ou ainda, aquele de Nicolaas Wilhelmus Posthumus, fundador do Instituto Internacional da História Social em Amsterdãn, na criação do Instituto Estatal de Documentação da Guerra nos Países Baixos, ou as tentativas similares de Suzanne Tassier em Bruxelas, foram testemunho deste período. 12 Portanto, os constrangimentos, as barreiras materiais, políticas e outras teriam rapidamente motivos para o estabelecimento de tais instituições. Quais foram então, os historiadores que ocuparam seus lugares e em qual estado exerciam eles suas profissões? De modo esquemático, nós podemos distinguir dois tipos de historiografia contemporânea emergente em diferentes países da Europa ocidental entre os anos de 1950-1970: a historiografia dita “pluralista” e esta produzida nos institutos do Estado.

O segundo pós-guerra na Europa ocidental é caracterizado pelo triunfo do modelo pluralista, consagrado politicamente através dos partidos políticos e suas organizações sociais e culturais afiliadas. A representação proporcional não sinaliza somente o partilho de assentos no parlamento ou em postos ministeriais do governo; ela serve ainda de chave para o partilho em quase todas as esferas da vida pública, desde a nomeação de funcionários para os conselhos administrativos de organismos públicos e semi-públicos, à garantia de um serviço médico nos clubes esportivos. Este tipo de organização recebe o nome de
lottizzazione na Itália, Proporz na Áustria ou ainda Verzuiling nos Países Baixos e na Bélgica. Durante essa época, naturalmente, a representação proporcional é também aplicada à historiografia, sobretudo à contemporânea. É fácil de ridicularizar esta storiografia lottizzata ao se fazer menção, por exemplo, que é nesta disciplina que o antigo chanceler alemão Helmut Kohl obteve seu doutorado, com uma tese acerca da história de seu próprio partido e mais precisamente, dentro da sua própria circunscrição eleitoral – tese esta desaparecida das bibliotecas logo em momento posterior à sua publicação. Reprodutora de versões partidárias, destinadas a uma utilização interna no círculo familiar político legitimando as escolhas feitas, até mesmo a produção de uma tradição política selada, essa historiografia política e politizada incorporou, por muitas vezes, as falhas que aproximamos e consideramos como sendo da história contemporânea. Ela representa, portanto, a maioria da produção de dissertações, teses de doutorado, colóquios e monografias saídos dos departamentos de história das Universidades da Europa Ocidental até meados dos anos 80. Sua impulsão se deu pela criação dos centros de arquivos e documentação afiliados às grandes famílias políticas e por fundações e institutos portadores de grandes nomes, sejam eles Maurice Thorez, Konrad Adenauer, Antonio Gramsci ou Giangiacomo Feltrinelli. Em um fluxo enorme de produções medíocres, esta historiografia em serviço do pluralismo - ou seria melhor escrever: do reino dos partidos? - não pode ser, portanto, desqualificada uma vez que ela também ofereceu um quadro e recursos à trabalhos inovadores sobre a história política do século XX.

Para além, nestes anos também se desenvolve uma corrente da ciência política pouco centrada na modelagem e que em sua prática é dificilmente distinguida da historiografia política, que seja por motivos ou questões institucionais. É na França e na Grã-Bretanha, onde as diferenças entre esquerda e direita se sobrepõem em uma lottizzione de acordo com critérios de filiação política ainda mais específicos, do qual uma história contemporânea e política stricto sensu se mantém a melhor opção, mesmo que esta seja praticada em outros lugares e se utilize de empréstimos de outros circuitos que não àqueles da história enquanto disciplina constituída. Na França, por exemplo, a história política impulsionada por Jean Touchard e René Rémond dentro do Instituto de Estudos Políticos de Paris desde o início dos anos 50, não pode ser confundida com o modelo dito “pluralista” descrito acima. Embora ela não partilhe as falhas de uma historiografia politizada e simplificada, ela mantém a característica por algum tempo, de evitar cuidadosamente, sujeitos sensíveis como na França, a história de Vichy.


Institutos Nacionais

O segundo modelo, mais atípico, nos interessa particularmente. Ele diz respeito á criação, pelos governos do pós-guerra, de Institutos Nacionais tendo por função a conservação de fontes do período da guerra e da escrita histórica dessas fontes. Estamos lidando aqui, com uma intervenção excepcional do Estado na produção historiográfica. Como a preservação, a codificação e interpretação de uma história recente da guerra, do nazismo e da ocupação eram tidas como uma urgência política e que este campo era até então ocupado pelas elites intelectuais e acadêmicas, coube aos governos do pós-guerra de tomarem a iniciativa para impulsionar toda essa produção. O primeiro exemplo data de outubro de 1945, quando, a partir da iniciativa do governo, é criado em Amsterdã um bem nacional nomeado de Instituto do Estado para a Documentação da guerra (
Rijksinstituut voor Oorlogsdocumentatie) 13. Na França, uma primeira Comissão para a história da ocupação e da Liberação foi criada em 1946, sucedida em 1950 pelo Comitê Francês para a História da Segunda Guerra Mundial. Em 1980 ocorre nova dissolução deste comitê, que é então sucedido pelo Instituto de Estudos do Tempo Presente, unidade própria do CNRS 14 (Centro National de Pesquisas Científicas). Na Alemanha, a criação de um Instituto de História do Tempo Presente (Institut für Zeitgeschichte) em Munique no ano de 1950 coincide praticamente com a criação da República Federal. Este instituto é desejado por muitos, representando um símbolo forte de que o Estado esteja preparado a assumir seu passado 15. Na Itália, um Instituto nacional para a História do Movimento de Liberação (Istituto Nazionale per la Storia del Movimento di Liberazione) é criado à Milão em 1949, com a abertura de dezenas de filiais em todas as capitais de províncias 16. Em 1967, este Instituto será oficialmente reconhecido pelo Estado. Na Áustria, um Arquivo de Documentação da Resistência Austríaca (Documentationsarchiv des Österreichischen Widerstandes) é inaugurado em Viena no ano de 1963 obtendo seu status oficial em 1983 17. Na Bélgica, com a inauguração de um Centro de pesquisas e estudos históricos da Segunda Guerra Mundial em 1970, é posto fim à proibição da discussão histórica acerca da ocupação por conta da controvérsia em torno da atitude do rei Leopoldo 18.

Todos estes institutos partilhavam três características singulares. Primeiramente, sua inserção institucional é bastante atípica. Estes não possuíam geralmente, nenhuma ligação com as universidades e seus departamentos, principal local da produção historiográfica, dependendo diretamente do governo, e na maioria das vezes, do Ensino Superior e da pesquisa. Na França, mesmo que os pesquisadores instalados nesses institutos tenham sido empregados pelo
CNRS, o Comitê de História para a Segunda Guerra Mundial foi, em um primeiro momento, esteve anexado diretamente à presidência do Conselho (do presidente da IVa República) e em seguida ao gabinete do Primeiro Ministro. Seu funcionamento testemunha uma concepção bastante administrativa, dada a figura de cargos representativos de alto escalão, funcionários estes em todos os ministérios, configurando uma rede nacional de correspondentes departamentais e seis subcomissões temáticas.

Em segundo lugar, esta situação sobressai do trabalho diretamente confiado a eles: de uma parte a preservação dos recursos e das fontes e de outra parte, a redação de uma síntese nacional, fazendo jus ao período em questão. A preservação das fontes foi uma real obsessão durante os primeiros anos do pós-guerra. Havia um receio muito grande de que a atividade clandestina durante o período da resistência, que certamente havia deixado pouco vestígio em arquivos, acabaria sendo esquecida, dado que as administrações locais e seus possíveis colaboradores tomaram para si a massa de arquivos que ali surgiam, dominando então a produção historiográfica. Este medo foi tal que, sem uma mobilização importante, os aspectos mais dignos de serem celebrados desapareceriam enquanto que os mais vergonhosos em relação à conduta nacional se perpetuariam. A constituição, por exemplo, coleções mais do que completas, a imprensa clandestina, todas estas fontes foram uma prioridade absoluta, apresentadas como um complemento da memória para os arquivos nacionais. Em linhas gerais, essas instituições eram inteiramente independentes dos arquivos nacionais, mesmo que alguns destes correspondessem ao período da guerra que, de direito, pertenciam aos arquivos nacionais, sendo conservados em suas imediações com o intuito de facilitar o manejo e a pesquisa. O controle de uma história nacional consensual acerca do período da guerra, a ser produzido no seio destas instituições em um curto período de tempo, testemunhava um bom grau de confiança nas vertentes historiográficas ali presentes. Uma vez a luz feita nesses anos sombrios, a via estaria livre para a reconciliação nacional, ao invés de controversas debilitantes e mal estabelecidas acerca do imediato pós-guerra. Portanto, a confiança havia limites. Nos Países Baixos, por exemplo, cada volume da síntese da guerra produzido pelo Instituto do Estado para a documentação deveria ter seu preâmbulo submetido à uma comissão composta de personalidades políticas para receber o aval do ministro. Na Dinamarca, coube ao ministério das Relações Exteriores de assumir a tradução e distribuição dos trabalhos acerca da conduta nacional durante o período de guerra, com um objetivo explícito de restabelecer a imagem do país no estrangeiro.

Uma terceira característica poderia ser traçada sendo ela a delimitação das competências destes institutos de história para a reconstituição de um quadro coletivo e de um contexto histórico do período da guerra, excluindo as responsabilidades individuais, sejam estas de ordem judiciais ou políticas. Na França e nos Países Baixos, por exemplo, uma comissão parlamentar é responsável por conduzir, no final dos anos 40, uma larga enquete para determinar as responsabilidades políticas para a defesa da conduta administrativa sob a ocupação, enquete esta que deu lugar a uma publicação volumosa acerca das fontes e testemunhos do período.
19 Esses inquéritos foram conduzidas sem qualquer ligação com os institutos e comitês criados para estudar este período, uma vez que estes últimos não eram aceitos em um terreno político. Estes institutos evitariam também todo conflito de competências com as instâncias judiciárias, encarregadas da apuração dos crimes cometidos no período da guerra. A partilha foi, em primeiro lugar, de ordem cronológica, haja vista a publicação no começo dos anos 50 das primeiras monografias a respeito dos crimes cometidos nos tempos de guerra, em um momento em que a ação dos tribunais se ameniza sob o efeito combinado de atrasos e de leis de anistia. A este momento deve-se adicionar, em geral, a prioridade absoluta acordada à História da Resistência e, em particular, a pouca atenção dada ao genocídio da população judaica até meados dos anos 60. Na França, o Comitê para a História da Segunda Guerra Mundial conduziu grandes pesquisas acerca da resistência e da deportação, mas deixou de lado a história da perseguição aos judeus na França para o Centro de Documentação Judaica Contemporânea, sob feito de que a resistência era um assunto que interessava toda à nação enquanto à perseguição aos judeus interessava, sobretudo, à comunidade judia.

Tendo em vista essas características particulares, é surpreendente notar que, se a historiografia dita “pluralista” foi criticada como a dos partidos, esta dos Institutos e Comitês Nacionais tenha sido denunciada como uma historiografia oficial ao serviço do Estado. Portanto também é merecido um registro suave desta prolação. Durante suas duas primeiras décadas de funcionamento, esses institutos ocupavam um papel crucial na preservação dos documentos e dos arquivos que não podemos deixar de sobreestimar. No entanto, sua produção científica desapontou bastante as expectativas de seus fundadores ao se tratar de uma historiografia consensual e sintética, produzida em um curto espaço de tempo. Os Países Baixos são o único país da Europa ocidental a ter uma produção histórica oficial em quatorze volumes quase incontestável e cerca de trinta volumes, redigidos pela mão de Louis de Jong, diretor do Instituto do Estado para a documentação da guerra. Contudo, esta publicação teve atraso considerável de cinco anos se tomarmos por base o calendário de publicações entre os anos de 1969 a 1991
20. Na França bem como na Alemanha, a produção é bem mais fragmentada. O Comitê para a História da Segunda Guerra Mundial e oInstitut für Zeitgeschichte cria cada um uma revista especializada que se impõem rapidamente como referencia no campo, contribuindo singularmente à internacionalização dos campos de estudos da Segunda Guerra Mundial .21 Se o Comitê francês produz toda uma série de monografias, como a de Henri Michel e Boris Mirkine-Guetzévitch, citados respectivamente na introdução deste artigo, majoritariamente consagrados à História da Resistência, a primeira síntese da história da ocupação é publicada por um jornalista, Robert Aron nos anos 50, e, a mais popular, publicada por outro jornalista, Henri Amouroux, nos anos 80 – um duplo afrontamento as história profissionais 22. Na Alemanha, a Zeitgeschichte se consagrou, sobretudo no momento de 1933, ao fracasso da República de Weimer e ao advento do regime nazista, deixando um pouco de lado o período da guerra em si. O nascimento de uma historiografia crítica é, além disso, acompanhado de projetos de pesquisa e investigação de grande envergadura com tonalidades abertas e apologéticas, como a publicação de uma documentação em vários volumes por iniciativa do Ministério dos Expulsados (Dokumentation der Vertreibung der Deutschen aus Ost-Mitteleuropa) ao longo dos anos 50 acerca da expulsão das populações alemãs da Europa central e oriental 23 .

Ao invés de ser monolítico, doutrinário e oficial, a produção historiográfica dos institutos nacionais é um tanto atrasada, fragmentada e concorrida. Em todo caso, ela teve graves problemas para se impor como uma referência nacional. Portanto, ela não dá a si mesma o crédito pela influência pública de suas instituições e protagonistas. Homens como Henri Michel, Louis de Jong, Eugen Kogon e Martin Broszat tiveram cada um, grande importância quanto ao exercício do historiador enquanto porta-vozes da consciência da nação. Eles bateram sua legitimidade com o seu engajamento durante a guerra, de exilados, jornalistas ou resistentes; sua opinião era instruída por um engajamento socialista e anticomunista sólido, praticando uma aproximação positivista da história, segundo os quais os fatos avariados uma crítica às fontes respondiam por eles. Seu papel público precedeu por muitos anos anteriores à publicação da essência de seu trabalho através de inúmeras intervenções na imprensa, e, sobretudo, no novo meio de comunicação com influência inquestionável, a televisão pública. Louis de Jong deve sua fama, antes de tudo, ao seu papel de autor e apresentador de uma série de cerca de vinte documentários sobre a histórica da ocupação, transmitido pelo canal único de televisão pública entre os anos de 1961 a 1965
24. Igualmente ocorreu durante o mesmo período com Henri Michel na França, com a série de documentários que dirigia sob o título de Trinta anos de História 25. Naquela ocasião, tais séries deram formato a julgamentos morais, opondo uma maioria patriótica a uma minoria criminal. Portanto, esta historiografia nacional foi muito mais caracterizada por um estilo e um tom do que por seu conteúdo em si ou por uma interpretação monolítica e hermenêutica. É este estilo que antes de tudo, suscita ainda mais a oposição e a crítica a partir do fim dos anos 60, um momento de contestação muitas vezes apresentado na França como “La Révolution Paxtonnienne”, segundo o nome do autor americano de um livro acerca da Vichy em tons francos, que contrastam com a clemência habitual das publicações sobre o assunto 26 .


Em direção a uma banalização da história do tempo presente?

Existe um primeiro paradoxo interessante entre o declínio terminal da historiografia patriótica e sua duração, sobretudo a dinâmica surpreendente das instituições que a acolheram. A revolução historiográfica atinge em menor grau eles do que em si possa se pensar que é feita por eles, em parte graças à traça da geração de fundadores. Em um país como a Bélgica, a renovação da historiografia toma contornos dentro do Instituto Nacional, com os trabalhos pioneiros de José Gotovitch e Jules Gérard-Libois, bem como os de Albert de Jonghe
27. Estes institutos acompanharam e impulsionaram a “banalização” da história do século XX na Europa Ocidental, através de sua inserção nos currículos universitários, nas revistas generalistas, pelas primeiras defesas de teses de doutorado tendo como objeto os periódicos posteriores aos anos 30 e pelo recrutamento de pesquisadores nas Universidades, uma evolução gradual de acordo com o tempo de cada país, mas que, de fato teve seu sucesso e confirmação ao longo dos anos 80. Na Grã-Bretanha, oJournal of Contemporary History define seu campo de estudos desde o ano de 1966 como a Europa do século XX e três anos mais tarde, historiadores belgas lançam uma revista belga de história contemporânea, um periódico antigo e exclusivamente consagrado ao XIX século 28 . Na França a revistaVingtième Siècle em um dia do ano de 1984, assinalava que o estudo do século XX constitui um campo a parte dos estudos da história contemporânea e que esta deveria ser definida como “história do tempo presente 29 . Concomitantemente com esta “normatização”, o saldo destes institutos, herdado particularmente após 1945, foi regularmente colocado na agenda desde o início dos anos 70 e, portanto todos são, em níveis distintos, transformados em centros diversos de pesquisa da história contemporânea. Eles estenderam seu campo de estudos abrangendo também os estudos de conflitos coloniais dos anos 1960. Na França, o Comitê de História da Segunda Guerra Mundial é dissolvido sobre fortes pretextos de conflitos entre seus membros no que tange à missão do Comitê durante o fim dos anos 70. Ele é substituído pelo Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), laboratório do CNRS que atualmente não possui qualquer ligação institucional com o Gabinete do Primeiro-Ministro. Nos Países Baixos, o Instituto do Estado para a documentação da guerra não perde somente seu nome no ano de 1988, quando passa a se chamar então de Instituto Neerlandês de Documentação da Guerra, anexado à Academia de Ciências e na Bélgica, o Centro de Estudos e de Documentação da Guerra e Sociedades Contemporânea é o sucessor do Centro de Investigação e Estudos Históricos da Segunda Guerra Mundial está em vias de integrar-se ao Arquivo Nacional. Os institutos italianos e austríacos ainda não foram transformados como os descritos acima, mas possuem fortemente o intuito de o serem. Na Alemanha, a missão do Institut für Zeitgeschichteem Munique foi, desde o começo, evolutiva. Desde o começo dos anos 90, este dispositivo é completado pela inauguração de um novo Zentrum für Zeithistorische Forschung à Potsdam, que tem por objetivo incentivar as pesquisas acerca dos regimes comunista na Alemanha, sublinhando o futuro dos Centros de Documentação e de Pesquisa sobre a História Recente 30 . A filiação Institucional, a missão e o campo de estudos herdado do pós 45 tiveram uma evolução profunda, mas conservam, ainda assim, uma originalidade real na paisagem das pesquisas históricas, originalidade esta que constitui um segundo paradoxo bastante interessante.


A Emergência do historiador-perito

O declínio da historiografia patriótica do período da guerra, a generalização do estudo de períodos históricos mais recentes e diversificados, sem inserção na paisagem acadêmica não banalizaram, até o presente momento, o historiador do tempo presente. A entrada para o “ranking” do exercício da história do segundo século XX (período posterior à 1940) não foi acompanhado por uma jubilação do cenário público e suas práticas. De certa forma, é até mesmo o inverso que se produz, já que o embate da tradição pragmática e consensual suscita uma série interminável de controvérsias e de contestações nas quais nós recorremos aos historiadores como comentadores, árbitros e peritos especialistas, dos meios de comunicação, dos tribunais, dos governos e parlamentos. Estamos diante, nesse momento, da resposta do sucesso, da consagração e do reconhecimento social pela contribuição da história do tempo presente para a compreensão do mundo atual. Os historiadores escreveriam livros de complexa leitura onde provariam sua erudição, suas competências técnicas na interpretação e reconstrução e é justamente sobre esta base de experiência válida que viemos então solicitar seus conselhos. Ou, como acabamos de ver com a experiência precedente, o sucesso público e midiático dos historiadores do contemporâneo precedeu e ultrapassou de longe sua influencia historiográfica.

A relação simbólica entre juízes e historiadores que se instaura a partir dos anos 60 ilustra, ainda melhor, esta cronologia perturbadora. É bastante claro que nesta época e logo após, não são os historiadores que se colocam no papel de juízes, mas sim os juízes que passam a jogar o papel de historiadores ao abandonarem a delimitação tradicional de suas competências para com os feitos recentes, pela introdução da noção de inédito e imprescritível. Não é por acaso que, na tradição judicial, sejamos julgados para além de certo período – até dez anos para os fatos mais graves – onde os métodos de justiça para se estabelecer uma prova não se apliquem mais. Ao investirem no passado, os juízes eram obrigados a recorrer aos historiadores. Ao aceitarem o papel de peritos nos tribunais, os historiadores aceitaram de forma inconsciente, as normas de funcionamento desses órgãos.

O melhor, e, provavelmente o primeiro exemplo, é o processo de Francfort em 1964 contra cerca de vinte responsáveis do campo de Auschwitz. Os tribunais alemães, que não chegariam a julgar seis mil antigos responsáveis nazistas em toda sua história, pediram encarecidamente ao partido para não introduzir nenhuma legislação retroativa e de julgarem os responsáveis com o código penal de 1870. A negação do princípio da retroatividade formara a base para a rejeição em massa da legitimidade do Tribunal de Nuremberg, tanto pelos profissionais do ramo quanto pela população alemã. Na lógica desta decisão, o processo se encarregaria de julgar o comportamento criminal de vinte indivíduos no lugar de julgar o sistema em si. Os réus foram condenados, mas não porque eles executavam ordens criminais, mas sim porque, no exercício de suas funções, eles cometeram transgressões, especialmente, roubos com o objetivo de enriquecimento pessoal em detrimento da
schutz staffel (SS). É dentro desta perspectiva jurídica que o Institut für Zeitgeschichte aceita apresentar um relatório especializado sobre o Estado SS. Com poucos retoques, a anatomia do Estado SS, SS Staates de Hans Broszat, Martin Buchheim e Helmut Krausnick é publicado sob a forme de livro, virando no ano seguinte obra de referência para toda uma geração de historiadores 31. Recentemente, observamos que a interpretação dada por uma minoria criminal pode não ser estrangeira em contexto e finalidade na qual ela foi redigida.

Tornara-se recorrente a figura do historiador em tribunais e essa multiplicação levou a uma reflexão acerca dos perigos inerentes a essa prática, assinalados, entre outros, pela rejeição controversa de Henry Rousso de comparecer ao tribunal para o processo de Maurice Papon
32. Fora dos tribunais, a polêmica em torno da retenção dos bens judaicos criou um mercado bem remunerado de peritos históricos nos cargos administrativos e, melhor ainda, nas grandes empresas, onde foram contratados em grandes quantidades para a prevenção de possíveis revelações prejudiciais à imagem das empresas. A prática da análise histórica e das comissões de inquéritos ultrapassou e muito o perímetro de atuação dos tribunais encarregados do objeto da Segunda Guerra Mundial. Depois da Alemanha e da França, foi a vez da Grã-Bretanha, da Suécia e mesmo da Bélgica pegarem essa via para resolver suas controvérsias, tão variadas quanto a pratica dos campos disciplinares dos trabalhadores recrutados, analisando casos como: a esterilização forçada dos deficientes mentais ou ainda a morte do primeiro chefe de governo do Congo, Patrice Lumumba, logo após a independência 33.

Os Países Baixos foram, sem dúvida, o país que generalizou ao máximo a prática de comissão de inquéritos. O Instituto do Estado para a Documentação da Guerra, e principalmente seu porta-voz Louis Jong, tiveram papel de arbitro em uma série de polêmicas ligadas ao engajamento durante o período de ocupação de personalidades publicadas como os business man Friedrich Weinreb, Willem Aantjes, Pieter Menten, Joseph Luns et Kurt Waldheim; conivência na deportação de judeus ou em crimes de guerra, engajamento juvenil nas SS ou no Partido Nacional Socialista. Esse papel atinge seu auge nos meios de comunicação em 1965. Logo após o anúncio de noivado da princesa herdeira com o alemão Claus Von Amsberg, o jornal britânico Daily Express publica uma foto deste último em uniforme preto de oficial da nonagésima Pantzerdivision, em operação no norte da Itália. Louis Jong foi em seguida enviado ao local para uma enquete rápida, concluída por uma coletiva de imprensa no aeroporto de Schiphol, onde o historiador anuncia que devido à falta de provas da implicação de Claus von Amsberg nos crimes de guerra, nada impediria seu casamento com a princesa. A prática do exame pré-nupcial acerca dos antecedentes históricos foi reconduzida cerca de trinta anos mais tarde, quando, em 2001, é anunciado o noivado do príncipe herdeiro Willem-Alexander com a argentina Máxima Zorreguieta, filha de um ministro da junta militar de Videla, quando a enquête foi confiada ao Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Amsterdã. Para além das polêmicas acerca de personagens públicos do carnet da família real, as controvérsias mais importantes se voltam para a história recente dos Países Baixos, confiados a cada ocasião a comissões ad-hoc: os crimes da guerra colonial na Indonésia; a captura de judeus e a desorganização do repatriamento e do acolhimento em 1945/46 e, por último cronologicamente, a responsabilidade do batalhão neerlandês pelo massacre de Srebrenica.

Esta última comissão de inquérito, confiada ao Instituto Neerlandês de Documentação para a Guerra, acerca dos fatos que foram produzidos em julho de 1995, foi publicada em 2002, sublinhando a falta de preparo do batalhão e da hesitante gestão da crise pelos responsáveis da época, provocando também a demissão do governo em exercício. Este inquérito pode ser considerado então, como uma prova surpreendente do poder do historiador-perito na sociedade atual e de sua contribuição para uma moralização da vida pública ainda que a gestão do debate publique pela comissão de enquêtes arbitrárias tenha suscitado críticas, particularmente por parte dos historiadores. O inquérito a respeito dos crimes cometidos no período da repressão financiada na Indonésia em 1969, publicada em somente em 1994, demonstra que a publicação foi em tempo suficiente para que qualquer polêmica acerca desta temática tenha se atenuado e que os responsáveis já tenham atingido a idade mínima de aposentadoria. A questão da captura e apropriação dos bens dos judeus foi confiada à nada menos que seis comissões de inquérito. Uma sétima é feita para analisar os aspectos não-financeiros do retorno de deportados e, mais particularmente, no inquérito da organização do repatriamento e da insensibilidade burocrática das autoridades públicas no acolhimento, por intermédio de uma fundação de pesquisa juntamente com o Instituto Neerlandês para a Documentação da Guerra
34 . Com o gradual alargamento desta comissão – com os repatriados judeus, aos outros repatriados alemães e logo após os indonésios – o projeto chega a recrutar até cinqüenta pesquisadores. Contudo, confrontado com contestações constantes o governo neerlandês decide no início do ano 200, quando a comissão de enquêtes havia problemas para levar adiante seus trabalhos, de acordar indenizações aos grupos em questão – judeus, repatriados indonésios, tsiganes e associações para o direito dos homossexuais – montante este que chegava a um total de cerca de quatrocentos milhões de euros. Tal fato deixou as comissões de inquérito em posição de escolha entre uma justificativa retroativa quanto à decisão governamental, sublinhando as injustiças cometidas, ou uma retaliação do financiador, atenuando o quadro. Quanto ao inquérito acerca do massacre de Srebrenica, o posicionamento dos críticos se fez, sobretudo, pela data de sua publicação, permitindo ao governo de pedir demissão faltando poucas semanas para o fim do mandato legislativo.

De forma mais fundamental, a prática sistemática de confiar o debate público às comissões de inquéritos foi criticada como uma despolitização de controvérsias pelo cenário político. As comissões funcionariam como congeladores, já que relatórios quentíssimos só sairiam dali em um momento adequado, ou seja, quando estes estiverem frios, acabando com a possibilidade de se estabelecer qualquer debate caloroso. Este déficit democrático, resultado de uma profissionalização do debate histórico, pode afetar seriamente o meio dos profissionais da história. O que ocorre com o debate contraditório entre historiadores se o acesso às fontes é acordado somente aos historiadores cadastrados nestas comissões? A abertura dos arquivos e a transparência excepcional, como no caso da comissão de inquérito para o caso de Srebrenica é, certamente, louvável, mas o acesso à conclusão da pesquisa é fechado e negado pelos seus dirigentes. Para além, qual é o impacto, por exemplo, da mobilização de cinqüenta pesquisadores sobre o tema da operação do repatriamento – objeto visado na duração do processo se este existir – sobre uma pequena comunidade de historiadores? Qual será, em termos, e dentro de uma nova ordem, o impacto da mobilização dos meios excepcionais pela Fundação para a Memória de Shoah, com respeito aos equilíbrios temáticos da pesquisa em história contemporânea na França? Não estaríamos nós, abandonando a orientação de nossos próprios questionamentos por decisões políticas e pela única liberdade da qual os historiadores dispõem, para colocarem suas próprias questões ao passado?


Profissionalização ou legitimidade científica?

Em cinqüenta anos, a prática da história “do tempo e do país onde vivemos”, como a define Saint-Simon, conheceu um desenvolvimento surpreendente, desde à descrença e falta de legitimidade à profissionalização de uma sub-disciplina conhecida por sua competência. Por muito tempo esta história foi considerada como uma
Legitimationswissenschaft, um discurso de legitimação sob os olhos da cientificidade, especialmente após 1945, seja em sua versão “pluralista” de uma historiografia das famílias políticas ou em sua versão nacional dos historiadores “oficiais”. Mesmo quando não queria ser a geografia política da historiografia do pós-guerra permitia inúmeras vezes uma orientação. O engajamento político de um Martin Broszat, ou Louis de Jong, de um François Bédarida, de um Albert de Jonghe ou de um Roberto Battaglia, foi indissociável de suas obras. Estes não reaparecem para dizer que seus escritos foram previsíveis ou politizados, em todo caso não para os mencionados acima. Eles escreviam, simplesmente, em uma época onde a filiação política não era considerada um assunto da esfera privada e o exercício da historiografia não era tido como um exercício livre de engajamento político, ou seja, não era tido como um exercício neutro. A geração de historiadores contemporâneos seguinte não passa a ter um posicionamento neutro de uma hora para outra, ainda que o engajamento político não seja mais considerado como um assunto público e que a lealdade profissional tenha primazia sobre a lealdade política. O status profissional dos historiadores é beneficiado por uma nova autonomia reconhecida. Na medida em que trazemos à tona a necessidade de historiadores peritos, sua visão qualificada do passado possuía o mesmo status que a visão de economistas acerca da economia, ou de veterinários sobre a questão bovina.

É com esta visão que a comparação entre juízes e historiadores obtém um interesse particular, não sendo esta é calcado sob a diferença do status profissional, da prova, do testemunho ou da reconstrução em cada uma de suas práticas profissionais. A competição territorial ocasionada pelos processos históricos, principalmente os relativos a crimes considerados imprescritíveis, demonstram até qual ponto as duas profissões estão dispostas a exigir um estatuto equiparável de autonomia na aplicação de seus precisos métodos em seus campos de competências exclusivas. Durante os anos do pós-guerra, ao qual nos referimos como o período de apogeu do modelo “pluralista” na maioria dos países europeus, os juízes também proclamam o seu pertencimento político, ou, em todo caso, este ato fora um segredo público e dependia dos mecanismos de nomeação segundo as quotas da lottizzazzione. A nova autonomia dos juízes, bastante saudado na Itália, na França e em outros países, é resultado de um enfraquecimento da fidelidade partidária e política, ou ainda pela emergência de uma fidelidade profissional mais forte que as lealdades precedentes. Ela é saudada como um forte signo do advento de uma sociedade pós-ideológica, do desaparecimento de um pluralismo estéreo ou mesmo um “tribalismo” político. A emergência de uma democracia liberal integral foi acompanhada pela afirmação de uma série de carreiras auxiliares, peritos de todos os gêneros aos quais podemos confiar uma gestão despolitizada em virtude de suas competências técnicas-científicas, em suma, pela sua liberdade e autonomia no campo político. Os historiadores e suas comissões de inquéritos seriam então, a ultima adição feita a essa lista. Nesta lógica, dentro em breve, as sociedades modernas não terão o que debater, mesmo de seu passado.

Poderíamos ter confiança na corporação de historiadores para gerar o passado? De qualquer forma, a idéia de uma “ordem de historiadores” é uma aberração. Por essência, o debate histórico é um debate cidadão, que diz respeito a todos os cidadãos sendo estes historiadores ou não e ainda os historiadores enquanto cidadãos. Como em toda disciplina, segundo Karl Popper, a legitimidade científica da história recente se faz em sua abertura às contradições, de modo não exclusivo, uma vez que a história não pertence aos historiadores. O historiador-perito ao se libertar das fidelidades políticas que dirigiam as sociedades do pós-guerra e caso ele aceite as normas e limitações da história vigente, corre o risco de encontrar-se ainda mais autônomo do que antes. Neste caso, a história recente não perdeu em nada sua particularidade. Esta é calcada na competição territorial dentro de um campo em que o objeto de estudos é alvo de muitos encontros e de muitas pressões e ainda com o desafio e a dificuldade de se estabelecer uma construção historiográfica a distância das críticas. Como em 1743, podemos concluir com Saint-Simon: “Compreendemos que o conhecimento é sempre bom, mais que o bem ou o mal consiste no uso em que fazemos deles”.
NOTAS:
1. Tradução: Letícia Novak – pesquisadora do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ. Revisão Técnica: Karl Schurster – pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ
2. Saint-Simon, Mémoires (texto estabelecido e organizado por Gonzague Truc), edição La Pleiade, 1959 [1743], p. 1.
3. Idem, p. 4.
4. Idem, p. 15
5. Idem, p. 5.
6. Idem, p. 10.
7. Idem, p. 12.
8. Henri Michel et Boris Mirkine-Guetzévitch, Les idées politiques et sociales de la résistance, avant-propos de L. Febvre, Paris, Presses universitaires de France, 1954, p. VII.
9. Idem, p. XI.
10. Ver Carole Fink, Marc Bloch. A Life in History, Cambridge, Cambridge UP, 1989 et Olivier Dumoulin, Marc Bloch, Paris, Presses de Science Po, 2000.
11. Ver James Obelkevich, “ Past and Present. Marxisme et histoire en Grande-Bretagne depuis la guerre ”, Le Débat, décembre 1981, p. 89-111 et id. “ New Developments in History in the 1950s and 1960s ”, Contemporary British History, vol. 14 n° 4, 2000, p. 125-142.
12. Pieter Lagrou, “ Historiographie de guerre et historiographie du temps présent : cadres institutionnels en Europe occidentale (1945-2000) ”, Bulletin du Comité d’Histoire de la Deuxième Guerre mondiale, vol. 30/31 (août 2000), pp. 191-215. (disponível em: http://www.ihtp.cnrs.fr/equipe/Lagrou/historiographie_pl.html)
13. Ver http://www.niod.nl/
14. Disponível em: http://www.ihtp.cnrs.fr
15. Disponível em: http://www.ifz-muenchen.de/. Para uma comparação mais clara entre a historiografia alemã e japonesa após 1945 consultar: Conrad, Auf der Suche nach der verlorene Nation. Geschichtschreibung in Westdeutschland und Japan, 1945-1960, Göttingen, Vandenhoeck&Ruprecht, 1999.
16. Ver http://www.insmli.it/
17. Ver http://www.doew.at/
18. Ver http://www.cegesoma.be/
19. Les événements survenus en France de 1933 à 1945. Assemblée Nationale. Session de 1947, n° 2344 (PUF, 1947-1951) et Enquêtecommissie regeringsbeleid 1940-1945 (La Haye, 1949-1956).
20. . Louis de Jong, Het Koninkrijk de Nederlanden in de Tweede Wereldoorlog, 14 vol., La Haye, Martinus Nijhof, 1969-1991.
21. Respectivemente a Revue d'histoire de la Deuxième Guerre mondiale e a Vierteljahresheft für Zeitgeschichte.
22. Robert Aron, Histoire de Vichy, 1940-1944, Paris, Fayard, 1954, 767 p. et Henri Amouroux, La grande histoire des Français sous l’Occupation, (9 vols.), Paris, Laffont, 1976-1991. Devemos sublinhar, sobretudo, a contribuição pedagógica de um autor como Henri Micehl entre outros pela redação dos cinco Que sais-je aux Presses Universitaires de France (por ordem cronológica remarcar as prioridades temáticas) : Histoire de la Résistance en France (1940-1944) 1950 ; Les Mouvements clandestins en Europe, 1938-1945, 1961 ; Histoire de la France Libre, 1963 ; Pétain et le Régime de Vichy, 1978 ; La Défaite de la France, septembre 1939-juin 1940, 1980. Dentre as obras precursoras devemos salutar a Vichy : 1940-1944 (Paris, Bordas, 1972) do historiador e universitário Yves Durand.
23. Com esse propósito ver, Robert G. Moeller, War Stories. The Search for a Usable Past in the Federal Republic of Germany, Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 2001.
24. Ver Chris Vos, Televisie en Bezetting. Een onderzoek naar de documentaire verbeelding van de Tweede Wereldoorlog in Nederland, Hilversum, 1995.
25. Ver Aquilin de Pacy, “ Le Comité français d'histoire de la Deuxième Guerre mondiale ” Tendances n° 56, décembre 1968, pp. 641-664.
26. Robert Owen Paxton, La France de Vichy, 1940-1944 Paris, Seuil, 1974.
27. Jules Gérard-Libois e José Gotovitch, L’an 40. La Belgique occupée, Bruxelles, CRISP, 1971 e Albert de Jonghe, Hitler en het politieke lot van België, 1940-1944, Antwerpen, De nederlandsche Boekhandel, 1982.
28. Ver vols. 1 et 2 du Journal of Contemporary History, 1966 et Revue Belge d’Histoire Contemporaine/Belgisch Tijdschrift voor Nieuwste Geschiedenis, vol. 1, 1969.
29. Vingtième Siècle, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, janvier 1984.
30. Ver http://www.zzf-pdm.de/
31. Hans Buchheim, Martin Broszat, Hans-Adolf Jacobsen e Helmut Krausnick, Anatomie des SS-Staates. Gutachten des Instituts für Zeitgeschichte, Olten, Walter Verlag, 1965.
32. Para mais detalhes a respeito ver: Henry Rousso, La Hantise du Passé, Paris, Textuel, 1998.
33. Para mais detalhes a respeito ver: Olivier Dumoulin, Le rôle social de l’historien : de la chaire au prétoire Paris, Albin Michel, 2003 ; o número especial de Sociétés contemporaines (n°39, 2000) sobre “ Expertises historiennes ” ; Jaap van Doorn, “ Belast Verleden. Over de historisering van de publieke moraal ”, Nederlandse Organisatie voor Wetenschappelijk Onderzoek, La Haye, 2000 ; Georgi Verbeeck, “ De Lumumba-commissie of een Belgische ‘Methodenstreit ‘ ”, Nieuwste Tijd, vol. 1 n° 1, 2001, p. 6-68.
34. Ver : Pieter Lagrou, compte rendu critique de Martin Bossenbroek, De Meelstreep. Terugkeer em Opvang na de Tweede Wereldoorlog, Amsterdam, Bert Bakker, 2001, 687 p. in Nieuwste Tijd. Kwartaalschrift voor eigentijdse geschiedenis, vol. 2, n°5, décembre 2002, p. 72-78.
LAGROU, Pieter. A História do Tempo Presente na Europa depois de 1945 - Como se constituiu e se desenvolveu um novo campo disciplinar Rio de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, Nº15, Rio, 2009 [ISSN 1981-3384]
Fonte: A História do Tempo Presente