5.1.10

Chumbos de hoje

Herança da época da ditadura militar, a tortura em presos comuns é praticada atualmente no Brasil
por Liliana Lavoratti*

Passadas quase quatro décadas do início da redemocratização, o Estado brasileiro pagou indenizações econômicas a cerca de 11 mil vítimas e familiares da ditadura militar, mas está longe de terminar a polêmica em torno do reconhecimento da ocorrência de crimes de tortura e responsabilização dos autores de violações de direitos humanos. O fato de ter começado pela reparação financeira aos presos e ativistas políticos impedidos de exercer suas atividades em razão do arbítrio do regime autoritário torna o Brasil o mais atrasado entre os países latino-americanos que passaram por governos de exceção.

A Resolução número 60/147 da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovada em 2005, e à qual o Brasil é signatário, afirma que a total e efetiva reparação por danos sofridos deve necessariamente incluir compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição. Essa, entretanto, não é a única consequência do caminho escolhido até agora para o acerto de contas sobre o período recente da história em que se confrontaram as forças armadas e organizações de esquerda. A prática da tortura permanece como uma forma de violência institucional presente no cotidiano dos aparelhos de segurança pública, especialmente contra os pobres.

O cumprimento do tratado internacional da ONU está sendo exigido pelos movimentos de direitos humanos para dar uma virada no processo de reparação em andamento e influenciar a reforma do aparato de segurança pública, ainda contaminado pela lógica do poder militar. "Neste momento, em alguma delegacia, tem alguém sendo espancado e machucado, à revelia das leis. No passado, os torturadores agiram contra os filhos da classe média, agora é muito mais grave porque as vítimas são os menos favorecidos, com menos poder de voz.

E nós, que passamos por isso na ditadura, temos o dever de lembrar sempre o que aconteceu e ainda acontece. Nossa indignação é contra o que os agentes do Estado fizeram contra nós em nome de uma política de tolerância zero, e fazem hoje exterminando miseráveis nas ruas das grandes cidades", afirma a fundadora e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Cecília Maria Coimbra. Segundo ela, não existem estatísticas oficiais de ocorrências dessas agressões.

Castelo Branco, à esquerda, na Ditadura Militar

"Para termos uma democracia efetiva precisamos concretizar o processo de reparação e estabelecer processos de memória. Ainda figuram como princípios da justiça de transição a apuração e processamento dos crimes contra os direitos humanos e a reforma das instituições, para que se amoldem ao democrático", Paulo Abrão - presidente da Comissão Nacional de Anistia, vinculada ao Ministério da Justiça

A total falta de informações sobre presos ou perseguidos, que caracterizou o regime militar, é algo corriqueiro atualmente. "Procuradores de Justiça contabilizam a existência de cerca de dez mil desaparecidos nos últimos dois anos no estado do Rio de Janeiro. Esse número escabroso não considera as centenas de autos de resistência registrados como justificativa das execuções durante as ações das forças policiais em nome do combate à violência", critica Cecília.

Embora reconheça que o crime organizado também torture, ela afirma que as práticas violadoras em grande escala partem das forças policiais e têm implicações com os períodos autoritários pelos quais o País passou, em especial o último, nos anos de 1960 e 1970. "Queremos que o Estado se comprometa em lutar contra as violações passadas e as atuais. Para isso, é preciso o esclarecimento, publicização e responsabilização de tais violações, com a abertura, ampla, geral e irrestrita de todos os arquivos e documentos referentes àquele terrível período", afirma a presidente do Tortura Nunca Mais do Rio.

A ideia não é simplesmente punir - "do contrário estaríamos agindo como eles agiram contra nós" -, mas afirmar "uma outra história: a vivida nos porões da ditadura, ainda pouco conhecida em nosso País", pontua a ex-militante que esteve entre os presos políticos. "Essa nova etapa coloca em análise as políticas de segurança pública que se fortalecem hoje em dia e são travadas, como antes, em nome da guerra contra os perigosos. Não por acaso, a Resolução da ONU defende o efetivo controle civil das forças militares e de segurança nos países atingidos por tais violações", completa.

A jornalista e escritora Teresa Urban, autora de "1968 - Ditadura Abaixo (Arte e Letra Editora, 2008), concorda com Cecília em relação à abrangência deste debate nos dias de hoje. "Toda forma de violência e arbitrariedade deve ser denunciada e rejeitada, ontem e hoje", afirma a ex-militante do movimento estudantil, presa e exilada durante o regime militar. Na opinião dela, o resgate da memória do passado faz sentido também para estimular que as vítimas atuaisde violações de direitos humanos não se refugiem no silêncio, por temor ou desconhecimento.

"Quando a tortura é praticada por quem é portador de autoridade pública, os responsáveis não devem ficar impunes, independentemente de quem for a vítima: se um ativista político com peso na opinião pública ou um morador da periferia", defende Teresa.

"Toda forma de violência e arbitrariedade deve ser denunciada e rejeitada, ontem e hoje"
Teresa Urban - jornalista e escritora

Caso contrário, mesmo há quatro décadas depois de iniciada a democratização, a população continuará vivenciando experiências repressivas semelhantes às ocorridas no período ditatorial. Esse legado pode ser identificado nas repressões às greves nos anos de 1980, na prisão de oito agentes penitenciários no Rio Grande do Sul por envolvimento em acusações de tortura de presos; no episódio com a menor de idade que ficou quase um mês presa em uma cela com 20 homens na carceragem da Polícia Civil de Abaetetuba (Pará); na morte de 1.137 pessoas ano passado no Rio e 431 em São Paulo, nos chamados "autos de resistência" (morte em confronto com policiais) e também na previsão recente de pesquisa indicando que até 2012 mais de 33 mil adolescentes serão assassinados no Brasil.

O conjunto dos esforços políticos e jurídicos que uma sociedade faz não deve apenas mudar a forma de governo, mas superar o período de restrição das liberdades, diz o presidente da Comissão Nacional de Anistia (vinculada ao Ministério da Justiça), Paulo Abrão. "Para termos uma democracia efetiva precisamos concretizar o processo de reparação e estabelecer processos de memória. Ainda figuram como princípios da justiça de transição a apuração e processamento dos crimes contra os direitos humanos e a reforma das instituições, para que se amoldem ao democrático", salienta.

"É sempre ruim quando se tenta instrumentalizar a justiça para algo. Se, ao final, 'apenas' tivermos reparado os perseguidos, já teremos cumprido o grande papel de minorar um mal histórico perpetrado contra o povo brasileiro"
Paulo Abrão - presidente da Comissão Nacional de Anistia, Vinculada ao Ministério Justiça


Divergências

A falta de consenso na sociedade brasileira na maneira de passar a limpo esse período da história recente ficou escancarada com os últimos acontecimentos referentes à Guerrilha do Araguaia. O major reformado Sebastião Curió Rodrigues de Moura, que combateu no Araguaia (Pará) entre 1972 e 1975, quando foram mortos 41 presos - o maior número de desaparecidos políticos do período da ditadura -, fez declarações à imprensa consideradas pelos movimentos de defesa de direitos humanos como a confissão, por parte do militar, de ter sido um dos executantes das ordens de prender, torturar e matar.

As divergências que começam dentro do próprio governo também são nítidas. Enquanto o ministro da Justiça Tarso Genro, o secretário de Direitos Humanos Paulo Vanucchi, a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff e o presidente da Comissão Nacional de Anistia fazem coro com os movimentos sociais e se manifestam favoráveis ao debate sobre a responsabilização dos crimes de tortura ocorridos no período da ditadura militar, por entenderem que esses crimes não são políticos e, portanto, não prescreveram - como afirmam alguns contrários à discussão -, o ministro da Defesa Nelson Jobim classifica como "revanchismo" a ideia de punir militares que tenham cometido atos de tortura.

A Lei de Anistia (Lei nº 6.683, de 1979) perdoa crimes praticados por motivação política no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Entretanto, a controvérsia gira em torno da extensão dos beneficiados. Genro e Vanucchi entendem que a anistia não se estendeu aos crimes comuns praticados por agentes públicos, como homicídio, desaparecimento, abuso de autoridade, lesões corporais e estupro.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não esconde sua discordância com os dois ministros, e fala abertamente que o Brasil precisa reverenciar resistentes e perseguidos como heróis, em vez de identificar e punir os algozes. "A gente fica chorando muito a morte dos nossos mortos e não os transforma em heróis.

A gente fica apenas querendo condenar os algozes e não transforma essas pessoas em heróis. Precisamos transformar o Apolônio num herói. O Brasil é um País sem herói", discursou Lula durante homenagem ao militante comunista histórico e fundador do PT Apolônio de Carvalho, morto em 2005. Ele foi um dos principais incentivadores de Lula.

Legislação

O "marco legislativo" do acerto de contas abrange ainda a Lei dos Desaparecidos (número 9.140/1995), que formalizou o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro por graves violações de direitos humanos e estabeleceu o direito dos familiares de desaparecidos requererem atestado de óbito e indenizações. Essa legislação foi ampliada em 2002, quando o governo Fernando Henrique Cardoso, depois de intensa pressão de segmentos sociais, enviou ao Congresso uma medida provisória prevendo indenizações em razão de perseguição política que causou prisão, perda de emprego, expulsão de escolas.

Essa proposta foi transformada na Lei 10.559/2002, que dá ao anistiado direito de contagem do tempo em que esteve afastado de suas atividades profissionais devido ao arbítrio do regime autoritário; à conclusão de curso e ao registro de diploma obtido no exterior e à reintegração aos cargos dos quais se afastaram devido à perseguição política. A Comissão Nacional de Anistia já analisou 62.964 processos de indenização por danos causados pela ditadura militar, dos quais 46.097 foram julgados. Desse total, foram deferidos 29.909, com 35,7% (10.689) com reparações econômicas de valor médio de R$ 56.431,07 (prestação única) e R$ 3.507,83 (prestação mensal). Outros 19.220 (64,2%) processos não resultaram em reparação econômica.

Os dados são de junho deste ano. O Ministério da Justiça não informa o valor desembolsado até agora pelo governo brasileiro a título de indenização, chamadas de "bolsa ditadura" pelos críticos dessa compensação aos ativistas políticos. Processos polêmicos ainda estão na fila de espera, como os dos "guias" e "mateiros" do Araguaia. "Nesse caso, a polêmica é identificar se esses cidadãos foram perseguidos ou perseguidores e, portanto, se têm ou não direito à anistia", explica Abrão. Para o Tortura Nunca Mais e familia- res de militantes mortos na Guerrilha do Araguaia, as indenizações represen- tam um avanço e se constituem em um direito, mas são insuficientes, pois o di- reito à verdade vem em primeiro lugar. "Só o dinheiro não restaura a dignidade, a reputação e os direitos dos atingidos e seus familiares.

A reparação, portanto, deve incluir a investigação e outras medi- das efetivas que impeçam a continuidade de tais violações", enfatiza Cecília. Ela chama atenção para o risco dessas indenizações se transformarem em um com- petente "cala boca". "Os governos, em alguns casos, pagam pecuniariamente pelos crimes cometidos por seus agentes e, com isso, não se sentem obrigados a responsabilizar os agressores".

É nesse ponto que reside mais uma divergência entre os vários atores desse processo. Um grupo de vítimas dos ex- cessos cometidos pela força do Estado não pediu indenização econômica jus- tamente por considerar que a reparação deve passar necessariamente pela apu- ração dos fatos, indicação e punição de seus responsáveis.

Transição

Embora não reste dúvida de que jus- tiça completa seria a apuração das res- ponsabilidades pelas agressões e outros atos ilegais cometidos por parte dos agen- tes do Estado, o cientista político e pro- fessor do Ibmec São Paulo, Carlos Melo, pondera que a Lei de Anistia resultou de um "armistício" entre as diversas forças políticas e sociais. Ainda no regime mili- tar, em decorrência da ampla pressão po- pular e aprovada pelo Congresso, a legis- lação anistiou cidadãos punidos por atos de exceção desde 9 de abril de 1964, data da edição do Ato Institucional número 1. "Essa lei reflete um meio termo entre não se fazer nada e a punição total dos que torturaram e mataram em nome de uma ordem", explica Melo.

1968 Ditadura Abaixo

Jovens e adolescentes de hoje vivem um mundo muito diferente daquele do final dos anos de 1960 e início da década de 1970, quando os estudantes foram protagonistas importantes dos fatos de 1968. Contar hoje a esses leitores os detalhes sobre um pedaço ainda desconhecido da história do Brasil - e da própria experiência no movimento estudantil - foi o desafio a que se propôs a jornalista Teresa Urban quando escreveu o livro "1968 Ditadura Abaixo", com quadrinhos de Guilherme Caldas (editora Arte & letra). A publicação recebeu, em abril deste ano, a Menção Altamente recomendável da Fundação Nacional do livro infantil e Juvenil (international Board on Books for Young People - Seção Brasileira) na categoria informativo, e é a única no País dirigida a esse público. "Foi um ano em que a juventude deixou de ser mera reprodução de pais e avós para enxergar o mundo com seu próprio olhar", afirma a autora, que participou do movimento estudantil em Curitiba (Pr), foi presa em 1970 e cumpriu pena como militante de organização clandestina. Por considerar que o Brasil ainda não discutiu todos esses acontecimentos claramente, Teresa não encerra o livro em 1968, mas traz um pouco da história do que veio depois. "este pós-68 também foi determinante para sermos o que somos hoje e por isso mostro a tortura, a arbitrariedade, as mortes, a lista de desaparecidos e os fatos que vieram em seguida." o esforço da geração de 1968 em desvendar o mundo é transmitido pela autora à geração atual. "o prazer de conhecer o País para indicar um caminho capaz de transformá-lo - foco da vida universitária de 40 anos atrás, que prevalecia sobre a necessidade de se preparar para uma carreira profissional - se constituía em uma urgência e num projeto coletivo dos estudantes levado para dentro da universidade, com atitudes permeadas de muita generosidade. o fato deste sonho ter esbarrado nos obstáculos impostos pela ditadura militar só tornou tudo mais intenso, e muitos arriscaram a própria vida em nome desse ideal", comenta Teresa. A ideia do livro surgiu de uma necessidade pessoal de transmitir para as gerações seguintes detalhes a respeito daquela época. Com o nascimento do primeiro neto, hoje com 16 anos, o desejo de relatar essa história se tornou mais premente. Para elaborar a obra, Teresa recebeu uma assessoria importante: a do próprio neto e de outros jovens da mesma faixa etária que mostraram a ela como contar essa história para a geração atual. "Com eles, compreendi o que é necessário para tocar o coração e a mente dos jovens e como conversar com eles", diz. o livro traz vários pontos de vista sobre a época tanto na política como na publicidade, cinema, literatura, cultura, música e outros acontecimentos que marcaram época no Brasil e no mundo - como a pílula anticoncepcional, a condição da mulher e a prisão de John lennon e Yoko ono por porte de drogas. "essas informações podem despertar o interesse dos jovens para a história daquele que foi um momento tão importante na história brasileira", completa Teresa. A contextualização é marcada por notas publicadas nos jornais da época que retratam as prisões de estudantes, os exílios, a publicação do Ato institucional número 5 e pela documentação dos arquivos da Delegacia de ordem Política e Social, atualmente disponibilizada pelo Arquivo Público do Paraná. "estava mais do que na hora de recuperar essa memória enquanto os protagonistas estão vivos para relatá- las", afirma a autora.

Na opinião dele, essa "conciliação" é condizente com o tipo de transição ocorrida no Brasil, do regime autoritário para a democracia. "Foi lenta, gradual e segura nossa redemocratização, não houve uma ruptura com o regime autoritário, como aconteceu na Argentina, Uruguai e Chile, que estão passando a limpo a história com a decisão de punir torturadores. São processos históricos e políticos bem diferentes", comenta o cientista político.

A professora de Direito Constitucional do Mackenzie, Claudia Marcia Costa, lembra que a Constituinte de 1988 também espelha esse espírito conciliador, pois trouxe uma solução de consenso possível, até porque nossa transição política é considerada uma transição tutelada pelas Forças Armadas. "A última Constituição tentou estabelecer mecanismos jurídico-políticos que assegurassem, no futuro, a efetividade de direitos retirados ou ignorados no passado", completa.

A Carta Magna incluiu Direitos Econômicos e Sociais que mostram o modelo de Estado desejado pelo País vinte anos atrás: um Estado (Social) Democrático de Direito, fundamentado na cidadania e no pluralismo político, ressalta Claudia. "Embora isso ainda não tenha se tornado uma realidade em sua totalidade, é algo que precisa ser respeitado", completa.

"Neste momento, em alguma delegacia, tem alguém sendo espancado e machucado, à revelia das leis"
Cecília Maria Coimbra - fundadora e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro e doutora em Psicologia pela Universidade São Paulo

Para que a tão sonhada consolidação da democracia se torne possível, os horrores do passado não podem ser jogados para debaixo do tapete, a doutora em Psicologia Social e autora do livro Memória Política, Repressão e Ditadura no Brasil (Juruá Psicologia, 2008), enfatiza que "abrir os arquivos da ditadura para conhecer o passado é fundamental para colocar políticas de memória no lugar das políticas de esquecimento que manipularam a história e predominaram até agora", ressalta. Segundo a autora, a impunidade dos responsáveis pela morte e desaparecimento de militantes de grupos armados de esquerda também faz parte da política de esquecimento.

Memória

Outro aspecto relevante, na opinião de Soraia, é a influência do processo em curso para a construção da memória política. Na pesquisa que realizou para o livro, ela constatou que para os entrevistados que não viveram o período da ditadura, vale o que as gerações anteriores contam. Outros elementos são as informações transmitidas pelas escolas, mídia e filmes - que tanto podem manipular ou passar uma visão crítica do período -, e os próprios movimentos sociais - que confrontam a história oficial.

"Existe uma disputa pela memória política, cada grupo dá um significado diferenciado para esse período. Portanto, são várias memórias e inclusive antagônicas", comenta a autora. Mas como a sociedade é um conjunto heterogêneo, é até natural que as reações sejam variadas, observa o presidente da Comissão Nacional de Anistia. "Existe um enorme apoio popular às ações da Comissão, mas, igualmente, tais ações geram fortes reações conservadoras, especialmente entre setores que entendem a democracia apenas como um procedimento eleitoral, e não como uma realidade material nas relações humanas", argumenta Abrão.

"É sempre ruim quando se tenta instrumentalizar a justiça para algo. Se, ao final, 'apenas' tivermos reparado os perseguidos, já teremos cumprido o grande papel de minorar um mal histórico perpetrado contra o povo brasileiro", diz o presidente da Comissão de Anistia. Para completar esse processo, é necessário produzir e divulgar materiais voltados à educação e à memória.

"O que se pretende é incentivar a memória coletiva e auxiliar na estruturação de processos críticos sobre a democracia. Aqueles que não viveram a repressão poderão conhecer a que fins servia e evitá-la no futuro. É o que se chama de princípio da não-repe- tição, ou, na linguagem viva dos movimen- tos sociais, o nunca mais". O governo tem franqueado acesso a ar- quivos, procurando interligar bases de da- dos, conta Abrão. Recentemente foi lan- çado o Projeto Memórias Reveladas, sob responsabilidade do Arquivo Nacional, que por meio de portal na Internet permitirá a consulta aos documentos da repressão nas mãos do governo federal e nos arquivos pú- blicos de mais 14 estados da federação.

"O acervo da anistia juntar-se-á a iniciativa, da qual a Comissão já é parceira, no exato mo- mento em que terminarmos a atividade julgado - quando nosso acervo processual se transformará na memória da ditadura con- tada desde a perspectiva dos perseguidos, e comporá fisicamente o Memorial da Anis- tia Política no Brasil, em Belo Horizonte", fi- naliza Abrão. A Comissão também já realizou 35 Ca- ravanas da Anistia em 11 estados, "resgatando a dignidade dos perseguidos po- líticos no local onde ela foi ferida", explica Abrão. Em parceria com a ONU, a Comissão viabiliza uma série de estudos sobre a ditadura no Brasil, que deverão ser lança- dos já em 2010.

Machucar impunemente o corpo do outro

É permanente e antiga a prática auto- rizada da violência física contra os mais fracos, sobretudo pobres e negros. No período escravocrata, os negros chega- vam a ser espancados em público como demonstração de prestígio e poder dos senhores. "A intrusão sobre o corpo do homem pobre e negro é um elemento constante e contemporâneo. Machu- car determinados corpos é uma autoriza- ção a priori. Se os violadores escolherem o corpo e o lugar certos, provavelmente nada acontece, tamanho é o grau de im- punidade", afirma o psicanalista Paulo Cesar endo, professor doutor do instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do laboratório de Psicanálise, Arte e Política.

As estatísticas não deixam dúvidas: o Brasil está entre os cinco países que mais matam jovens (17 a 24 anos) no mundo, vítimas das forças policiais e homicidas. o período que mais se torturou no Brasil foi depois da ditadura. "essa é outra constatação que indica claramente que a permanência dessas agressões está dire- tamente vinculada com o legado deixado pelos aparelhos utilizados no período ditatorial contra os que resistiram ao autoritarismo", argumenta o psicanalista.

Se na década de 1970 o alvo eram os militantes de organizações de esquerda, líderes estudantis e intelectuais que se insurgiram contra o regime militar, com o fim da ditadura, os pobres - sobretudo os negros, jovens e de baixa escolaridade - passaram a ser as vítimas da agressão do corpo físico, explica o professor da USP. "embora qualquer cidadão possa ser atingido pelo livre arbítrio das forças de segurança, que não querem abrir mão do privilégio de machucar algum corpo alheio, existe um grupo de vítimas privile- giadas", acrescenta endo.

Não é por menos que os brasileiros evitam abordar os policiais, que a princípio existem para proteger a população. Segundo endo, o aparato de segurança, usado no passado para combater a guer- rilha urbana e rural continua agindo como nos tempos do regime militar, mesmo depois do estado democrático de direito. Ao perceber que a estrutura de segu- rança é usada contra a população, os cidadãos passam a ver o estado como algo separado de sua realidade e começa a conceber a possibilidade de justiça pe- las próprias mãos, e a segurança privada ganha espaço.

"Num sistema em colapso como o nosso, com aumento dos índices de letalidade da violência, não existe a menor condição de o estado vir em socor- ro logístico das vítimas, proporcionando reparação", afirma o psicanalista. Não é por acaso que se reproduzem nas grandes cidades os Centros de referên- cia e Apoio às Vítimas e Fóruns contra a Violência, iniciativas da sociedade civil que oferecem algum amparo material e psicológico a vítimas e familiares de violações sofridas em espaços públicos. "infelizmente, os pobres não possuem organização nem recursos como os militantes políticos do passado, que conseguiram ser ouvidos e conseguiram reivindicar reparação", acrescenta. e, mais uma vez, se estabelece o círculo vicioso: o corpo que tem direito à proteção é o do endinheirado capaz de contratar segurança privada, pois o único lugar seguro fica sendo o privado.

Na avaliação do professor da USP, esse quadro levará algum tempo para mudar, uma vez que o estado se move de acordo com a sociedade. "e nossa sociedade ainda é extremamente conservadora em relação a esse tema. Vê na pena de mor- te, na redução da maioria penal e no não reconhecimento dos crimes de tortura a saída para o problema da violência".

Fonte: portal Ciência & Vida