28.5.10

Marxismo e Vanguarda

Dois momentos historicamente distintos marcaram a relação entre o marxismo e a vanguarda artística. No primeiro deles, mais ou menos entre 1890 e 1930, foi assinalado pela simpatia e aproximação, depois disto deu-se um crescente estranhamento, quando não aberto repúdio da vanguarda pelo marxismo. Quem melhor encarnou esta última fase foi o famoso teórico da cultura, o marxista húngaro-germano George Lukács, um dos expoentes do stalinismo nas questões da estética.


A perspectiva marxista


Para melhor entender-se o escopo da critica feita por Lukács, senão que um anátema lançado contra as vanguardas, é preciso situar como o marxismo se posicionava frente à cultural ocidental. Via-se ele, em parte, como herdeiro do iluminismo, sentindo-se como uma expressão da emancipação do homem dos grilhões da necessidade (econômicas, políticas e sociais) e, por outro, posicionava-se como seguidor da tradição humanista (que colocava o Homem como centro das suas preocupações fundamentais). Tradição esta que denunciara como deformadas pela ‘fria lógica do capitalismo’ e pelos interesses mesquinhos e lucrativos da burguesia ocidental.


Aproximando-se da vanguarda


Ao tempo em que o marxismo era uma doutrina marginal ao sistema filosófico e político vigente na Europa do século XIX, quase que considerada uma ideologia subversiva, senão que criminosa aos olhos das autoridades (perseguida na França depois do levante da Comuna de Paris, de 1870, e proscrita da Alemanha por Bismarck, após um atentado fracassado contra o imperador Guilherme I, em 1878), era natural que visse com simpatias as rebeldias e injurias dos artistas e dos boêmios em geral contra a arte oficial e a ‘ordem burguesa’.


A inquietação dos pintores, dos escultores, dos poetas e dos literatos, era entendida como revolta salutar. Um desaforamento ao conformismo filisteu que dominava o cenário cultural hegemonizado então pelo academicismo (a verdadeira besta-negra das vanguardas).


A crítica incisiva deles aos costumes e valores tradicionais parecia aos marxistas como equivalente ao que Marx e Engels fizeram ao se insurgirem contra o pensamento político e econômico convencional. Demonstrativo desta estreita relação entre as artes avançadas e a revolução no período que antecede a Primeira Guerra Mundial foi o fato de que quando o bolchevismo ensaiou seus primeiros passos como movimento revolucionário radical, Lenin, num famoso ensaio intitulado 'O que fazer?', de 1902, não hesitou em denominar seu partido como sendo a ‘ vanguarda do proletariado’.

Esta ‘afinidade eletiva’ é que fez com que inúmeros artistas se manifestassem abertamente como ‘ socialistas’ ou ‘anarquistas’ (como os pintores Courbet e Pissarro, e tantos outros). O caso dos surrealistas franceses neste aspecto foi exemplar, sabendo-se que um número significativos deles militou abertamente entre os comunistas nos anos vinte e trinta (os poetas André Breton e Paul Éluard), o mesmo podendo-se dizer dos expressionistas alemães (vistos como ‘artistas malditos’, simpáticos aos comunistas) e dos futuristas russos (que, pelas mãos e Maiakóvski e Málevitch aderiram em peso á revolução de 1917).


Do apoio ao afastamento


Quando a Revolução Bolchevique ainda não se consolidara na Rússia, o novo regime sob o comando do Narkompros , o comissário da educação e cultura – também chamado de Comissariado do Esclarecimento - Anatoly Lunacharsky ( 1917-1929), convocou os vanguardistas de todos os setores para se expressarem, garantindo a eles ampla liberdade de criação (até os trens militares de Trotski eram profusamente decorados com temas futuristas). Aceitaram o abrigo do comissariado os artistas Vladmir Tatlin, O.Rozanova, Alexander Rodchenko, Wassily Kandinsky e Málevitch.A situação de lua de mel entre a revolução política e arte arrojada começou a desandar com a estabilização do regime comunista no começo dos anos trinta. Historicamente o afastamento de Lunarcharsky, em 1930, assinalou o fim da aliança entre o bolchevismo e a arte vanguardista.

Apartando-se das vanguardas

G.Lukács ( 1885-1971)
Doravante, entendeu a liderança stalinista, não se tratava mais de desrespeitar as regras e os cânones. O comunismo agora alcançara o estatuto da ordem. O trabalho de desmontagem do velho regime czarista já fora concluído. A nova plataforma enfatizava ‘a construção do socialismo num só país’, e, por conseguinte, a época das experiências radicais e da insubordinação havia passado. A sátira e o deboche das instituições começaram a ser mal vistos.


O regime, a partir do Iº Congresso de Escritores da URSS, realizado em Moscou em 1934, exigiu a mobilização dos artistas e literatos para que se engajassem no desafio de transformar a velha Rússia numa sociedade de engenheiros e operários e não mais de senhores de terras e camponeses ignorantes.


As mensagens, além de terem que ser remetidas em invólucros simples e objetivos, tinha que ser obrigatoriamente ‘otimistas’, exaltando a tarefa gigantesca em que o partido e o seu líder máximo, ainda que isolado do restante do mundo, se lançava. Desta forma, o escritor foi visto como um tribuno popular, defensor sem disfarces da causa do povo e um obediente seguidor da ‘linha do partido’.


Este reposicionamento do estado soviético rumo ao conservadorismo liquidou com a Arte de Vanguarda russa visto ela não se ajustar aos propósitos da política oficialmente determinada. O partido agora exigia ordem e disciplina e não posições iconoclastas ou irreverentes (isto é que explica o destino trágico do suprematista Málevitch, preso e torturado, morto na extrema pobreza, em 1935).


Nesta reformulação, a categoria do Realismo tornou-se a ‘categoria central da crítica literária e artística em geral’.


A crítica de Lukács à vanguarda – particularmente à sua face literária - pertence inteiramente a este período: a fase em que o marxismo tornou-se doutrina oficial do estado soviético e não mais o combustível teórico da revolução social. (*). Momento este que combinou com a época em que o pensador igualmente abandonava seu passado utópico, entrando para a etapa que Miguel Vedda denominou de ‘Lukács tardio’.


(*) Imensamente erudito, os estudos estéticos de Lukács concentraram-se nas letras, não na música, artes plásticas ou arquitetura.


Exaltação do realismo


Como o Iº Congresso de Escritores soviéticos acatara, a linha das publicações obedeceria às exigências do Realismo Socialista. Tudo devia ser exposto numa prosa e uma poesia simples com um comprometimento ideológico sincronizado com os objetivos do regime stalinista. Evidentemente que ninguém naquele momento cogitou que tal decisão comprometeria a obra de arte fazendo dela um mero panfleto político a serviço do estado soviético, quando não tornando o romance um prolongamento das diretivas do partido.


Tal ênfase no ‘realismo’ fez com que o marxista Lukács, que era um dos maiores eruditos da literatura européia do século XIX, paradoxalmente, viesse a celebrar o romance burguês (Balzac, Stendhal, Flaubert, Heinrich e Thomas Mann, Gottfried Keller, Tolstoi, Romain Rolland, etc..) como a melhor fonte na qual os escritores socialistas deveriam beber. Se bem que a enriquecessem com a perspectiva revolucionária ou crítica. Preocupando-se em dar um escopo histórico social à estética contribuiu para o enquadramento das artes à vontade da direção central partidária.


Desde os começos de 1930, refugiado em Moscou, ele, que era húngaro de nascimento, mas de formação filosófica e cultural alemã, se integrara aos quadros do Instituto Marx-Engels empenhando-se como um ideólogo da ortodoxia do regime, emprestando seu estudo e vasto conhecimento à solidificação da linha adotada em 1934, entronando, contraditoriamente, o Realismo do passado como a bússola da literatura soviética do presente. Denominou sua tese como ‘realismo revolucionário’.


Não somente a literatura burguesa – fundamentalmente o romance oitocentista - lhe parecia como o melhor modelo como também o ‘ romance histórico’, particularmente os de Walter Scott e de J. Fenimor Cooper. Eles serviam perfeitamente como lição a todo jovem literato engajado com intento de se comunicar com as massas.


Viu naquele gênero uma maneira democrática e acessível de ensinar história às multidões. Por tanto, o Realismo (na arte ou na literatura) afirmou-se como o compromisso primeiro e inquestionável do artista politizado.



Portas fechadas

A exaltação do Realismo fora motivada igualmente por outra percepção dele: a obra de vanguarda não penetrava no coração das maiorias. Era apreciada por uma minoria de leitores excêntricos ou de esnobes. Não ajudava em nada aos homens comuns libertarem-se da alienação em que viviam e muito menos insuflar-lhes ardor de rebeldia qualquer. Enquanto os autores comprometidos com o Realismo – que escancaram suas portas para infinitas possibilidades - vendiam seus romances e novelas para milhares de leitores (caso de Cervantes, Shakespeare, Balzac, Tolstoi ou Gorki), uma porta estreitíssima conduzia à obra de James Joyce e aos demais expoentes da vanguarda.


Este fato, por si só, impedia que ‘ amplas massas populares pudessem aprender’ alguma coisa com aquele tipo de experimentação. Entre outras razões, porque ‘nesta literatura falta realidade, obrigando o leitor a aceitar um tipo de vida estreita e subjetivista’.


Sua incompreensão amplia-se devido às deformações e desfigurações propositais da realidade. Isto impede que o homem do povo possa traduzi-la para ‘a linguagem das suas próprias experiências vitais’. A ausência na literatura vanguardista de uma relação viva com a vida popular e com o desenvolvimento progressivo das experiências das massas é que fazia com que ela fugisse da grande missão da literatura.


Além disto, ela teimava em ‘apagar o rosto dos seus personagens a ponto de reduzi-los a uma espécie de sombras’, ou a mania que os vanguardistas tinham de ‘ destruir os seus contornos ou de limitar a um único plano, ou ainda de coagulá-las em fantasmas, em imagens de sonho, desprovidas de qualquer racionalidade. ’


Como, por exemplo, encontrava-se nas novelas de John dos Passos (‘Franz Kafka ou Thomas Mann’ in Realismo crítico hoje, 1969.)


No entender dele, o Realismo era a única linguagem capaz de orientar o leitor para o despertar de ‘uma nova vida politicamente ativa’. Sua tarefa maior era denunciar ‘os fenômenos de decadência política, cultural e artística’, abrindo caminho ao que era significativamente popular. E, entre estes fenômenos negativos estava a luta travada pela vanguarda no sentido de ‘ uma liquidação cada vez mais enérgica do Realismo’.


Assim sendo, longe de ser a indicadora das novas tendências, a obra modernista era expressão do declínio social e cultural da sociedade capitalista. Uma espécie de fuga, contribuindo ainda mais para o isolamento da literatura e da arte, e não para o esclarecimento e emancipação das massas da opressão em que viviam. O experimentalismo estava associado à decomposição e ao descompromisso e não à contribuição positiva para uma nova visão do mundo.

Arma de luta

Casal no kolkoze (Vera Mukhina, 1936)
Lukács via a literatura realista como uma revelação, algo ligado diretamente à consciência política do homem comum. O escritor, para ele, tinha a função similar ao do indivíduo relatado por Platão no mito da caverna, aquele que, liberto das correntes, percebe a existência exterior de um outro mundo, muito melhor do que os que estão agrilhoados lá no fundo da caverna e desce de volta para esclarecê-los. Para ele não havia entretenimento nem diversão na leitura. A literatura devia ser uma arma de luta, jamais de lazer.


O grande embate no mundo das letras se dava entre o clássico x moderno, mas se a obra escrita contribui ou não para a desalienação do homem, se ela representa ‘ o progresso da literatura atual’.


Exaltação do patológico


Mas as diferenças entre a posição de Lukács e a vanguarda não estavam circunscritas a (in) eficácia da prosa ou da sua (in) compreensão. Havia também um desacordo na questão filosófica: na visão do Homem. O pensador húngaro reclamou que os vanguardistas haviam abandonado a percepção aristotélica do homem que o definia como ser social, isolando-o do restante da sociedade, como se esta nada tivesse a haver na configuração do personagem. Para o vanguardista, o individuo ‘limita-se a sua existência’, nada existe que possa agir efetivamente sobre ele. Substituiu a realidade de fato pela possibilidade abstrata, incorrendo na dissolução do homem e na dissolução do mundo. Denunciou a influência negativa de Kierkegaard sobre os modernistas, pois para o filósofo dinamarquês ‘ cada homem vive num incógnito impenetrável aos outros homens e nada pode rompê-lo. ’


O protesto que a vanguarda ensaia termina recaindo não sobre as injustiças sociais e outras anomalias concretas que cercam o personagem, mas sobre a patologia. E esta fuga em direção à patologia desemboca num vazio... ‘na fuga para a doença’. Em parte, a responsabilidade disto deveu-se a influencia crescente de Freud, cujos retalhos de pensamento e observações do cotidiano alimentaram a imaginação dos vanguardistas os conduzindo a entender o normal pela psicologia do anormal, bem ao contrário dos clássicos que trataram as paixões como expressões de homens normais e não como de excêntricos ou neuróticos.


O gosto que os vanguardistas demonstraram pelo aviltamento patológico do homem, da perversidade e da idiotia, fez da anomalia e da bizarria a verdadeira ‘condição humana’.
A percepção de Gottfried Benn de o humano ser visto como um ‘ pequeno monte viscoso no morno pântano’ é degradante, senão que infamante. Revela, antes de tudo, a perigosa tendência da vanguarda em se posicionar como anti-humanista.

Oscilando entre a mediocridade burguesa e a excentricidade patológica, ela termina por traçar caricaturas da personalidade humana, rejeitando como Franz Kafka e Robert Musil, qualquer perspectiva futura para o homem.


Esta perda da esperança que se junta ao tédio termina por gerar ‘ o homem monstro’(exemplo: o homem-inseto do conto ‘A metamorfose’ de F.Kafka). A uma sensação de completo abandono frente a um temor inexplicável.


Entre outros perigos que ele denunciou na vanguarda foi que a obsessão dela em romper completamente com as formas tradicionais produziu um efeito muito mais radical do que o esperado: o desaparecimento de qualquer forma literário, o que conduziu inevitavelmente à ‘autodestruição da estética’.

Crítica ao Expressionismo

Ainda que a maioria dos artistas expressionistas alemães fossem ativistas um simpatizantes da esquerda, eles não se viram poupados por Lukács. Atribuiu a eles a função de ‘ ideólogos’ atuando entre os dirigentes e as massas. Mesmo que as convicções políticas deles fossem sinceras, apresentavam-se ‘ confusos e obscuros’.


Na prática, arte expressionista ‘ projetava vacilações e proposições contra-revolucionárias’(ideologia da não-violência, crítica abstrata da burguesia, caprichos anarquistas. Etc.). Representava as indecisões típicas de uma ideologia de transição (entre a ordem burgueses abalada e a revolução que se encaminhava para a vitória), o que fazia com que o expressionismo se visse de fato impedido de ser uma verdadeira estética da revolução.

Os defeitos do expressionismo

Gottfried Benn, modernista negativista
O primeiro defeito que Lukács observou no expressionismo foi sua ambição de conceber-se eterno, quando era fruto de circunstâncias históricas bem determinadas (a decadência da sociedade burguesa na transição do século XIX para o XX). Além disto, o predomínio do anti-realismo impediu o controle e a superação das tendências falsas que se abrigavam em seu meio, o que prejudicara ‘ a captação profunda da realidade’.


A forma confusa, caricata, e por vezes excessivamente complexa com que se relacionavam com o público, terminou criando obstáculos para o processo da necessária clarificação ideológica revolucionária daqueles a quem influía. As massas sentiam-se embaralhadas frente aquele tipo de arte, tornando-a inútil para a mobilização radical.


Quanto ao desaparecimento do expressionismo como movimento estético singular, para Lukács isto não se deveu à política contra-revolucionária desencadeada pelos próprios sociais-democratas alemães, em 1919 (a violenta política repressiva anti-espartaquista de Noske, o ministro do interior da recém proclamada República de Weimar, que culminou no assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebcknecht, líderes da extrema esquerda, em janeiro de 1919, em Berlim). No entender do pensador húngaro, foi a Revolução Bolchevique de 1917 com seu enorme impacto sobre a realidade européia e mundial quem transformou em fumaça a estética expressionista.


Concluiu então que, ‘ quanto mais se aprofundava o socialismo na URSS mais ainda foi sendo abandonada a Arte de Vanguarda na Rússia’, por conseguinte foi a crescente maturidade das massas revolucionárias quem impingiu a ‘ derrota do expressionismo’.

Nota: uma boa síntese sobre o ponto de vista marxista mais recente sobre a relação do Realismo com as vanguardas encontra-se na série de artigos publicados por Carlos Nelson Coutinho, em 1967, onde se encontra um capitulo especial intitulado ‘O Realismo como categoria central da crítica marxista’(in ‘Literatura e Humanismo’, pág. 95-136), na qual o autor remete a outras posições sobre o entendimento do Realismo (Galvano Della Volpe, Leandro Konder, Roger Garaudy, etc.)

Bibliografia


Coutinho, Carlos Nelson – Literatura e humanismo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1967.

Fischer, Ernst – A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966.

Konder, Leandro – Os marxistas e a arte. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967.
Lukács, George – Materiales sobre el realismo. Barcelona- Buenos Aires- México, Grijalbo, 1977.


Lukács, George – La novela histórica. Barcelona: Grijalbo, 1977.


Lukács, Georg – Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada-editora de Brasília, 1969.


Tertulian, Nicolas – Georg Lukács – etapas do seu pensamento estético. São Paulo: Editora UNESP, 2008.


Vedda, Miguel - Lukács: Etapas de su pensamiento estético y político. (IPS) Instituto del Pensamiento Socialista Karl Marx. Buenos Aires, septiembre de 2005

Williams, Raymond – Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1979.

Fonte: Voltaire e Schilling